No dia 15 de novembro, a Clarivate Analytics, uma das principais empresas globais de pesquisas, publicou o ranking Pesquisadores Altamente Citados 2022. Neste ano, a lista inclui 6.938 cientistas e cientistas sociais de 69 países diferentes, que demonstram influência positiva e ampla em suas áreas de atuação. As pessoas que compõem esta listagem publicaram vários artigos que repercutiram e foram mencionados de forma significativa, classificando-se entre os primeiros 1% por citações por campo e ano na última década. Ou seja, de todos os pesquisadores do mundo, eles são um em cada mil.
A Associação Brasileira de Psiquiatria - ABP orgulha-se de ter em seu corpo associativo dois médicos psiquiatras que fazem parte dos Pesquisadores Altamente Citados 2022: o Dr. André Russowsky Brunoni e o Dr. Luis Augusto Paim Rohde. Conversamos com os dois doutores para saber mais sobre suas trajetórias científicas. Leia a entrevista abaixo!
ABP: Desde que o senhor começou a realizar e publicar pesquisas, o que mudou no cenário da ciência brasileira?
Dr. Brunoni: Comecei a fazer e publicar pesquisas em 2010, quando o Brasil estava passando pelo auge da produtividade científica. Nesses últimos anos, houve muitas dificuldades em financiamento e uma "fuga de cérebros" bastante intensa. Por outro lado, noto também que houve um progressivo amadurecimento na ciência brasileira, com muitos grupos aumentando a qualidade (impacto) das publicações e buscando de maneira bastante intensa a internacionalização. Nosso grupo, por exemplo, tem conseguido contornar o subfinanciamento científico nacional buscando aporte financeiro nos EUA, Reino Unido e Europa. Aqui, é necessário mencionar a forte estrutura institucional constituída no Instituto de Psiquiatria, na FMUSP e na USP (instituições em que atuo), que apoiam e fomentam essas oportunidades.
Dr. Rohde: Claramente a relevância que a pesquisa passou a ter na formação do médico em qualquer especialidade. E de forma mais ampla para a sociedade como um todo. Basta vermos questões como a vacinação durante a pandemia. Hoje a tomada de decisão clínica de qualquer psiquiatra deve ser baseada em dados científicos e esse referencial só se constrói a partir da valorização da pesquisa.
ABP: Quais são os desafios que a psiquiatria e a ciência em geral enfrentam ainda hoje no Brasil?
Dr. Brunoni: Como mencionado, a questão do subfinanciamento, que buscamos contornar através da captação internacional de recursos. Notamos também uma mudança no perfil de alunos de pós-graduação, aparentemente com menor interesse nessa formação. Na última década, houve também uma baixa abertura de vagas para docência nas universidades, o que desestimula uma geração mais jovem. Assim, um grande desafio é identificarmos e retermos esses jovens talentos. Em São Paulo, iniciativas lideradas pela FAPESP, com linhas de auxílio de fomento à pesquisa específica para jovens doutores, têm ajudado mas ainda são insuficientes. Em nosso grupo, os recursos internacionais que captamos permitem que bolsas de estudo sejam financiadas, retendo esses pesquisadores por um período maior de tempo, até que eles se tornem pesquisadores independentes e constituam seus grupos de pesquisa.
Dr. Rohde: Inúmeros em termos de ciência. Principalmente a falta de financiamento através de órgãos públicos, exceto no estado de São Paulo. Além disso, a dificuldade de atração de verbas para pesquisa do setor privado ou através de parcerias público-privadas. Além disso, é importante também que se amplie a noção de que dois eixos fundamentais para o desenvolvimento da ciência na área médica no país são: inovação, ou seja, evitar a chamada pesquisa “me too” ou simples replicação e a ciência de implementação, ou seja, buscar soluções científicas que possam ser implementadas no cotidiano das populações e que realmente tenham impacto na melhora da saúde geral e mental dessas populações.
ABP: Neste ano, a Clarivate Analytics declarou que a metodologia para compor a lista dos Pesquisadores Altamente Citados 2022 mudou, se tornando mais confiável por excluir pesquisadores cuja atividade de publicação e citação é incomum e suspeita. Qual o ponto de vista do senhor sobre a ética na pesquisa? O que ainda precisa mudar?
Dr. Brunoni: Artigos, citações, índice H e outras métricas que derivam destas são usadas para mensurar a produção científica de um pesquisador. Acontece que, na medida em que essas métricas passam a ser mais conhecidas, elas passam a ser "gamificadas" de várias maneiras: alto índice de auto-citações, "consórcios" internacionais que se resumem à reciprocidade em listas de autoria, publicação excessiva de resultados secundários, entre outras. O algoritmo da Clarivate Analytics é, de longe, o mais confiável, porém ainda é vulnerável a esses efeitos. Assim, nesse ano, a mudança na metodologia fez com que quase 10% dos pesquisadores identificados pelo algoritmo fossem excluídos.
Pessoalmente, acredito que podemos fazer mais, valorizando as práticas de open science, que incluem a pré-publicação de protocolos de pesquisa, o compartilhamento de dados brutos, o impacto social dos resultados e a disseminação dos achados para a população em geral são outros produtos da pesquisa científica que são tão importantes quanto a produção de artigos científicos, porém relativamente menos valorizados (talvez por não serem tão mensuráveis quantitativamente). O progressivo entendimento desses conceitos podem aumentar a ética em pesquisa e diminuir as fraudes. Vale lembrar que a fraude abrange um amplo espectro de práticas danosas para a produção científica, desde a manipulação/fabricação pura e simples de dados (menos comum) até o compartilhamento de autorias (mais comum). Acredito que essas fraudes "mais comuns" tenderiam a diminuir na medida que a ciência passasse a ser medida de uma forma mais plural.
Dr. Rohde: “Ética e pesquisa andam de mãos dadas”. Acho que em relação a essa questão que envolve citações duvidosas e auto-citação é fundamental que se desenvolva a noção nas novas gerações de que o futuro dependerá de inovação e ciência de implementação e não apenas da quantidade de publicações. Ou seja, temos que investir em qualidade na pesquisa médica no Brasil. A psiquiatria é pioneira e está solidamente colocada nessa área no país. Iniciativas como as feitas pela ABP em relação a sua revista científica, que hoje atingiu um patamar jamais imaginado, são exemplos vivos disso.
ABP: O ranking reconhece os cientistas mais citados, mas não as pesquisas propriamente ditas. O senhor poderia destacar algum estudo que já realizou e qual foi a importância dele para a psiquiatria?
Dr. Brunoni: A principal linha de pesquisa de meu grupo me deixa especialmente orgulhoso pois os nossos resultados podem ser traduzidos para a prática clínica de maneira muito rápida, essencialmente por dois motivos: (1) realizamos ensaios clínicos randomizados, que são o padrão-ouro em termos de evidência causal e (2) fazemos estudos com intervenções de estimulação magnética e elétrica transcranianas e não com fármacos. Esse segundo ponto é importante, pois mesmo que um fármaco novo tenha sua eficácia comprovada em um ensaio clínico, ainda há um gap de alguns anos até que ele seja produzido e disponibilizado em escala global. Por outro lado, na neuromodulação não-invasiva, o resultado clínico já pode ser aplicado, literalmente, no dia seguinte, pois o aparelho já se encontra disponível, mudando-se apenas os parâmetros de uma condição para outra. Nesse sentido, nosso grupo tem apresentado resultados consistentes no uso dessas técnicas em transtornos psiquiátricos como depressão, TOC e esquizofrenia.Em outra linha de pesquisa igualmente importante que desenvolvo, avaliamos o papel dos transtornos mentais comuns na população em geral. Nessa linha de investigação, temos demonstrado que as doenças clínicas e os transtornos mentais estão muito interconectados, e que o tratamento de uma condição afeta a outra. Comprovamos os ditados de "mente sã em corpo são" e de que "não há saúde sem saúde mental".
Dr. Rohde: Difícil falar de um estudo em si. Acho que o conjunto de nossa obra no sentido do estudo de aspectos epidemiológicos como aqueles avaliando novas trajetórias de TDAH da infância à idade adulta e de aperfeiçoamento dos critérios clínicos para diagnóstico de TDAH fizeram diferença no cenário internacional, mudando conceitos estabelecidos e gerando dados para modificações nos critérios diagnósticos para o TDAH que são usados no mundo inteiro.
ABP: Qual é o sentimento de ser um dos representantes do nosso país na lista dos Pesquisadores Altamente Citados 2022?
Dr. Brunoni: Fazendo parte de um grupo seleto de pesquisadores, essa identificação certamente me orgulha e deixa nosso grupo bastante feliz. Considero que isso traz um grande prestígio para a psiquiatria brasileira, e desejo que isso incentive novos talentos a perceberem que é possível produzir pesquisa científica de qualidade em nosso Brasil e, assim, progressivamente "engordar" a lista para que tenhamos cada vez mais representantes em nosso país.
Dr. Rohde: De muita felicidade em representar a Psiquiatria Brasileira, conjuntamente com o André, dentro do cenário de pesquisa de ponta no mundo.
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